Em
defesa dos direitos humanos, visitava operários, estudantes e políticos nas
celas da polícia. Foi numa sala da repressão que conheceu Luiz Inácio Lula da
Silva, que havia sido detido após as greves dos metalúrgicos do ABC. Ficaram
amigos pelo resto da vida. Na época, o bispo de Santo André era d. Cláudio Hummes,
mais tarde arcebispo de São Paulo, que abrigou nas igrejas da diocese
trabalhadores impedidos de se reunir.
Missas. Em março de 1973, d. Paulo abriu as portas da
Catedral da Sé para uma missa em memória do estudante Alexandre Vannuchi Leme,
aluno de Geologia da Universidade de São Paulo, que havia sido torturado e
morto em dependências do Exército. O arcebispo considerava esse ato como sua
primeira e, até então, a mais corajosa reação da Igreja ao regime. Os militares
prometiam reprimir um protesto programado pelos colegas de Alexandre na Cidade
Universitária. D. Paulo preferiu celebrar uma cerimônia religiosa para evitar a
violência.
Com
o presidente Ernesto Geisel, os problemas se agravaram. Embora tivesse um canal
de comunicação direta com o governo - o general Golbery do Couto e Silva -, o
cardeal enfrentou situações difíceis. O auge foi o assassinato do jornalista
Vladimir Herzog, em outubro de 1975, na sede do Destacamento de Operações de
Informações (DOI) do 2.º Exército.
D.
Paulo promoveu um ato ecumênico na catedral em memória de Herzog, que era
judeu. A cerimônia levou mais de 8 mil pessoas à Praça da Sé. Ao lado de vários
bispos, entre os quais d. Hélder Câmara, do Recife, lá compareceram o rabino
Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright - dois aliados que, daquele
dia em diante, lutariam de mãos dadas com o cardeal em defesa dos direitos dos
perseguidos pelo regime.
Três
meses depois, morria sob tortura o operário Manuel Fiel Filho, cuja prisão d.
Paulo denunciara. Geisel exonerou o comandante do 2.º Exército, general Ednardo
d’Ávila Melo, com quem o cardeal tivera vários atritos. Um deles envolveu o
sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que estava na mira da repressão. O
arcebispo recorreu ao governo e obteve a promessa de que Cardoso não sofreria
abusos. Nasceu aí a amizade entre d. Paulo e o futuro presidente.
A
defesa dos direitos humanos, também lhe criou inimigos. “O cardeal só defende
bandidos”, reclamavam autoridades policiais. D. Paulo respondia que lutava
contra todo tipo de violência. Em 1989, deu um testemunho definitivo. Convocado
para servir de mediador no sequestro do empresário Abílio Diniz, na zona sul,
não hesitou em arriscar a vida para libertar o dono do Pão de Açúcar. Passou
horas se equilibrando no muro até obter um acordo com o sequestradores. Tinha
consciência do perigo que corria. Antes de sair de casa, pediu a um padre que o
ouvisse em confissão, pois temia ser morto.
Arquidiocese. No plano pastoral, o arcebispo revolucionou
São Paulo. Descentralizou a administração, delegando poder e atribuições aos
bispos auxiliares e ao clero. Seu projeto era, ainda no pontificado de Paulo
VI, dividir a arquidiocese em dioceses interdependentes. Não conseguiu. “A
divisão feita em 1989 não corresponde a nosso projeto”, lamentou em 1996,
alguns dias antes de encaminhar ao papa a renúncia, por motivo de idade (75
anos). Dizia-se que d. Paulo perdeu território e poder com a criação das
dioceses de Campo Limpo, Osasco, São Miguel Paulista e Santo Amaro,
desmembradas de São Paulo, mas não foi isso que ele mais sentiu.
O que doeu foi a frustração de um plano
que ele vinha construindo havia tanto tempo para dar continuidade a seu estilo
de trabalho. “Foi esse, talvez, o capítulo mais triste de minha vida de
arcebispo sob a orientação do papa João Paulo II”, escreveria em seu livro Da
Esperança à Utopia. A rejeição do projeto era consequência de sucessivos
atritos com a Cúria Romana. Cinco anos antes, em 1984, d. Paulo enfrentara
dificuldades no Vaticano, quando intercedeu com o cardeal Aloísio Lorscheider,
em favor do franciscano Leonardo Boff, defensor da Teologia da Libertação, que
havia sido censurado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé. A mediação não funcionou. Reduzido ao
silêncio, Boff deixou o sacerdócio.
Ao
apresentar o pedido de demissão, era arcebispo havia 26 anos. Achava que seria
afastado imediatamente. Não foi. João Paulo II só nomeou seu sucessor, d.
Cláudio Hummes, em abril de 1998. Não era o seu candidato. D. Paulo havia
indicado o nome de d. Antônio Celso de Queiroz, um de seus auxiliares. O
Vaticano ignorou a sugestão. D. Celso foi nomeado bispo de Catanduva (SP). O
estilo e o ritmo da pastoral mudaram, mas o cardeal aposentado permaneceu na
capital, a pedido do novo arcebispo. D. Paulo foi morar no Jaçanã, na zona
norte, onde continuou escrevendo. Celebrava missa num hospital de idosos aos
domingos e recebia pessoas no convento de São Francisco, no centro, às
quintas-feiras.
Do
Jaçanã, zona norte paulistana, d. Paulo Evaristo Arns mudou-se para uma casa
das irmãs franciscanas em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. A rotina
continuou a mesma, mas em ritmo mais lento, por causa da saúde debilitada.
Vivia altos e baixos. Selecionava as visitas e emocionava-se ao recordar velhos
tempos.
Quando
teve um enfarte em março de 2005, não passou de um susto, mas foi internado no
Instituto do Coração (Incor). Em novembro, fez uma cirurgia para redução da
próstata. Nada grave, mas a saúde não estava bem. Sua fragilidade vinha de maio
de 1971, quando sofreu um acidente de carro, indo de Santa Catarina para o
Paraná. Ficou com problemas circulatórios que se agravaram nos anos seguintes.
Em
1992, sofreu um acidente mais grave: um carro em alta velocidade bateu no jipe
militar que o transportava com d. Geraldo Majella Agnelo, em Santo Domingo, na
República Dominicana, onde participavam de reunião dos bispos da América
Latina. D. Paulo passou 18 horas inconsciente. Não se lembrava de detalhes do
acidente, mas ao reconstituir o que lhe ocorreu concluiu de que devia ter sido
um atentado. Não imaginava quem pretendia matá-lo, mas insistiu na suspeita. Em
1997, fez uma cirurgia para extirpar um câncer no músculo do olho esquerdo.
Na
casa das irmãs franciscanas, celebrava missa todas as manhãs, lia os jornais,
rezava e recebia amigos. Não via televisão. Quando a irmã Zilda Arns morreu no
terremoto do Haiti, em 2010, ditou uma declaração à imprensa. “É uma morte que
surpreende, mas é uma morte bonita porque ela morre no cumprimento de uma causa
em que sempre acreditou.”
Depois de se aposentar, participava de
atos públicos só quando convidado. Quando falou, sua palavra repercutiu. Por
exemplo, quando deu um extenso depoimento no caderno Aliás, que o Estado publicou
em 2005, quando João Paulo II estava muito doente. “Sim, seria hora de o papa
renunciar para que a Igreja possa acompanhar o movimento da História”, disse.
Na
entrevista ao Aliás, falou sem censura. Até porque não seria mais eleitor, no
conclave que elegeria o sucessor de João Paulo II. A eleição do alemão Joseph
Ratzinger agradou a d. Paulo. Cinco meses depois da posse de Bento XVI, ele
aderiu ao coro dos cardeais eleitores que justificaram a escolha pelas
qualidades pessoais do novo papa. “Ratzinger é um homem muito inteligente e de
uma sensibilidade muito fina para as dificuldades das pessoas.”
O
cardeal consolidou essa convicção nos anos seguintes. Em 2007, na visita de
Bento XVI a São Paulo, encontrou-se com Ratzinger. Conversaram em alemão alguns
minutos, apenas o suficiente para d. Paulo chegar à convicção de que o sucessor
de João Paulo II saíra melhor do que a encomenda. Nas entrelinhas, havia as
sequelas das dificuldades que enfrentou no pontificado do polonês Karol
Wojtyla.
Quando
Bento XVI renunciou, em 2013, d. Paulo ficou cheio de esperança com a eleição do
papa Francisco. “D. Paulo falava com empolgação sobre Francisco, o argentino
Bergoglio que ele conhecia há muito”, revelou d. Angélico Sândalo Bernardino,
bispo emérito de Blumenau (SC) e ex-bispo auxiliar de São Paulo. D. Paulo
voltou à Catedral da Sé duas vezes nos últimos meses: em setembro para
comemorar seus 95 anos e em 27 de novembro, na celebração dos 71 anos de
ordenação sacerdotal. No dia seguinte, foi internado no hospital Santa
Catarina.